sábado, maio 28, 2005

Alma Mutilada

Estás tão longe... Tão longe de mim, meu amor.
Passas os dias no quarto, sentada em cima da cama com o olhar triste, lacrimejante, a olhar para fotografias de quando eras mais nova.
Às vezes tenho vontade de ir ter contigo e de te tirar daí. Mas até eu já nao tenho forças para tal. No principio, no principio não era assim. Bem me lembro de como te conheci.
Frequentávamos os mesmos locais, os mesmos corredores, as mesmas salas, mas sempre em tempos e horas diferentes. Na correria obstinada do dia-a-dia passávamos quase um pelo outro e nem reparávamos na alma de cada um de nós. Até um dia.
Lembro-me perfeitamente do dia em que o tempo e porventura o destino nos fez olhar um para o outro. Naquele corredor, naquele local áspero, frio e pouco luminoso, os meus olhos repararam na tua presença. Os teus cabelos ruivos desde logo te diferenciavam das outras - aliás, sempre foste e serás diferente das outras. Os meus olhos colaram em ti. Tu retribuis, e como se o tempo tivesse parado naquele instante senti que nada mais havia à nossa volta. Todo o movimento inerente àquele local parecia ter desaparecido subitamente. Éramos só nós os dois. Meus olhos penetravam nos teus e assim ficámos segundos que pareceram uma vida - uma vida em que eu andei sempre à procura dos teus e tu dos meus. Algures no meu estado catatónico pessoas chamam-me, eu olho para o lado, vejo quem me chama. Volto rapidamente a olhar para onde estavas, porém, já tinhas desaparecido.
Dias depois num convivo boémio qualquer vi-te de novo. Avancei e metemos conversa. Não sabia o que dizer e havia entre nós uma série de silêncios ensurdecedores. Pegas na minha mão e levas-me para o jardim que rodeava o recinto. A tua pele branca, macia e doce, fazia-me desejar querer ficar em contacto contigo o resto da minha vida.
Falámos, falámos e falámos até perdermos a noção das horas. De repente era já um novo dia.
Tempo avançou. Tempos depois tínhamos uma relação. Acabámos o curso, arranjámos emprego, comprámos uma casa e casámos. Estávamos a viver a nossa história de amor e assim foi durante seis anos. Depois tivemos o Pedro, nosso filho, e subitamente afastaste-te de mim...
Concentrávamos toda a nossa atenção no Pedro que acabámos por deixar que a nossa relação tivesse a falecer aos poucos.
Eu, preocupado com vocês, trabalhava horas e horas a fio, para vos poder proporcionar tudo o que era necessário, assim pensava eu, porém, esqueci-me de vos dar tempo comigo mesmo, para poderem estar comigo e podermos estar todos juntos.
Acabei por perder a vida do Pedro. Enclausurado no trabalho ele cresceu só contigo, e tu a viver só com ele. Chegava de madrugada e partia de manhã cedo, quando todos dormiam. Pensava que eram felizes, mas esqueci-me de que vocês precisavam era de mim e não daquilo que eu trazia para casa.
Quando estava em casa, coisa rara confesso, o Pedro raramente saía do quarto, tal como tu. Pedro raramente falava comigo e vivia no quarto. Às vezes pensava o porquê de a casa estar tão vazia com vocês os dois a viverem o dia-a-dia nos respectivos quartos. Depois compreendi que algures no percurso da minha vida eu tinha ficado sem vida, e acima de tudo, já não existia, ou nunca tinha existido na vida de ambos.
Dava contigo a chorar no quarto olhando para as fotografias de quando eras nova, de quando eras feliz. Pensei várias vezes que se calhar no decurso da tua vida tivesses desejado nunca ter encontrado os meus olhos naquele corredor.
Eu sabia por que choravas, sabia perfeitamente, porém, nunca te perguntei com medo de ver confirmadas as minhas ideias.
E assim continuámos a nossa existência. Até ao fim, até ao fim de tudo. Seremos sempre três, três seres no mesmo tecto, na mesma casa, todos unidos e todos separados. Estranha forma de viver.
Seremos sempre três, três almas mutiladas pela vida e o destino.