domingo, janeiro 23, 2005

Indiferença

'Morro um pouco todos os dias. É banal, eu sei, acontece-nos a todos. O problema é que o sinto, lentamente, como se o ar nos pulmões fosse menos. Talvez nunca entendas completamente. Tantas vezes to tentei explicar. Ou talvez seja melhor não entenderes. É verdade, estou a morrer, devagar, por nenhum motivo em particular. Cansei-me da vida e de todas as inúmeras pequenas coisas que me desgastam e arrancam a alegria de viver. Quantas foram as noites em que pensei acabar com tudo? Tantas. Falta-me a coragem. A distância entre o pensamento e o acto é um mundo onde cabem todas coisas. Penso, preparo e vivo com o pensamento como se isso bastasse para fazer passar a dor. Há-de existir nessa ideia uma lógica qualquer. Pensar que faço algo torna-se quase tão bom como fazê-lo. Quem nunca pensou nisso? Não deve existir ninguém que nunca tenha contemplado tal ideia, ponderado como o faria, quando, e como seria depois – porque tem de existir sempre um depois, não é assim? A simples ideia de um final não chega. É preciso imaginar as reacções, os actos, as conversas, como se o fim fosse ainda um último insulto.
O meu coração não tem funcionado. É um problema que nunca se vai resolver mas que também não mata de uma só vez. Todos os dias amo menos, sinto menos, sofro menos. Até ao ponto da indiferença que é, talvez, o pior dos sofrimentos. Essa capacidade enorme de não sentir absolutamente nada. Caminho pelos dias, pela vida, por todas as caras que encontro sem sentir rigorosamente nada. Pergunto-me se isto nunca terá um fim. É claro que terá. Mas será mais tarde que mais cedo. Melhor ainda seria uma espécie qualquer cura. Isso, um milagre. Acordar um dia sem me sentir indiferente. Agarrar-me a algo e sentir. Não somos, todos nós, ensinados à obrigação de sentir? Vivemos e sofremos em prol do que queremos sentir. Construímos vidas inteiras à volta dessa ideia. E quando deixamos de sentir? Mas ninguém morre de insensibilidade, pois não? Ainda cá ando. De casa para o trabalho e vice-versa. Ao sabor dos horários, das normas, das etiquetas e modas e de tudo que é correcto. Até não conseguir perceber sequer onde estou. Tornou-se um pesadelo contínuo. Sem suores frios ou quentes. Sem gritos. Sem despertar. É apenas a minha vida.
E terei o direito de estar assim na tua vida? Creio que não. Dou por mim a querer amar-te sem conseguir. Levo-te este corpo seco para cada todos os dias sem te conseguir dizer que morri por dentro e não encontro saída. Tu estás lá, para os meus olhos sem expressão, para os meus dedos insensíveis, para as palavras sempre iguais todos os dias. Alimentas-me. Perguntas-me se estou melhor. Se algum dia voltarei a estar bem. Nesses momentos quero mesmo chorar e não consigo. Se ao menos chorasse talvez acontecesse algo de bom. Quem sabe, o milagre.
Farto de viver nesta ausência de mim, o céu e os dias passam. A vida escorre-me por entre os dedos. Devagar. Sem sentido. Sem sentir. Aonde é que eu acabei? Onde ficaram os meus restos, o meu sentir, aquele que sabia ser eu? Morro. Aos poucos, sem qualquer razão. Arrasto-me por mais um dia. Só mais um dia. Sem saber para aonde. Quando as últimas luzes se apagam e todos os amantes se abraçam na noite, continuo em silêncio, à procura de uma razão. E não consigo parar. Preciso de fixar um ponto qualquer onde encontre um pouco de mim. Não peço muito. Alguns sentimentos, qualquer coisa que me faça sentir homem, nem que seja por um pouco, uns instantes. Apenas algumas palavras que me deixem amar-te como já amei. Abraçar-te com o sentido que já existiu. Acreditar que pertenço a algum lugar ou alguém. E sentir-me feliz por isso.'